Walter Casagrande, comentarista esportivo que fala abertamente sobre sua dependência, externou por mais de uma vez o pensamento de que o dependente químico é um dos primeiros da lista de discriminações e que dói do mesmo jeito de quando homossexuais e pessoas pretas são ofendidas, por exemplo. Ele acredita que ainda é muito difícil para a sociedade lidar com o dependente porque ela não sabe, não entende ou ainda não é esclarecida que a dependência química é uma doença (mas que recuperar-se e viver sem drogas é possível) - preconceito, preocupação e desconfiança existem e são constantes.
A opinião de Casão, como é popularmente chamado, fez e faz total sentido. O diferente, o desconhecido, o “estranho” ainda causa estranhamento e evidencia a ausência de uma educação pautada na diversidade, seja nas escolas ou em casa.
Em referência ao Dia dos Pais, decidi conversar com quatro perfis de pais que não se encaixam no padrão eurocêntrico e heteronormativo ou que são portadores de alguma questão de saúde.
Gabriel Mori é pai da Isabela (8 anos) e do Lucas (6 anos), CEO e fundador do Programa de Recuperação Conexão Humana. Angelo Morse é pai da Analua (12 anos) e do Caetano (5 anos), ator, poeta, artista plástico e gestor escolar. Alessandro Fernandes é pai dos gêmeos Anne e Max (4 anos e meio), administrador de empresas e funcionário público. Cezar Sant’Anna é pai da Fernanda (14 anos) e padrasto do Guilherme (7 anos), closer de vendas e ativista de temas relacionados à transexualidade.
O que será que um pai dependente químico em recuperação, um pai preto, um pai cadeirante e um pai trans têm em comum?
Confira!
1. O que é paternidade real para você?
Gabriel - Para mim, não existe paternidade real, existe apenas paternidade! Condiz com amor incondicional, educador, exigente, seguro, sem rótulos. Pai é pai, assim como mãe é mãe, independente das condições! Quando se ama verdadeiramente acontece a paternidade como ela é e isso se chama AMOR! Essa, para mim, é a mais perfeita definição de paternidade.
Angelo - Eu tenho filhos e tenho que compartilhar a criação deles e estar presente. Sou separado e, apesar da guarda ser compartilhada, a mãe acaba ficando com uma carga maior, mas a minha missão é educar essas crianças para que sejam pessoas melhores do que eu. E, na verdade, já são. Meus filhos são melhores do que eu, com certeza. Paternidade real é você honrar seus filhos. É amá-los e fazer de tudo para protegê-los e educá-los.
Alessandro - É exercer com entusiasmo o papel de pai, ensinando, servindo de exemplo e amando incondicionalmente.
Cezar - Paternidade real é mostrar para o seu filho uma referência possível de ser e existir. Muitos pais acham que não demonstrar os sentimentos, não falar sobre seus medos, seus erros, não compartilhar tomadas de decisões é a maneira adequada de se relacionar com os filhos. Eu faço tudo isso ao contrário: conversamos sobre tudo! Isso permite à minha filha entender as responsabilidades e consequências quando preciso decidir algo; quando a mostro que errei em algo faz ela perceber que não precisa ter medo da tentativa, é normal errar (e é esperado que ela erre, isso faz parte do processo do desenvolvimento). Dar ao filho o exemplo de uma pessoa real é permitir que ele evolua da maneira saudável, sabendo que não existe nenhum ser humano perfeito, somos todos aprendizes. Eu aprendo enquanto ensino.
2. A seu ver, quais os melhores caminhos para ensinar os filhos sobre diversidade, afeto e respeito?
Gabriel - Através do exemplo. Não existe outra forma de ensinarmos nossos filhos sobre discriminações em qualquer nível. Tratamos aqui todos como iguais. Essa resposta aqui não é fantasiosa, é real. Meus filhos convivem com um pai dependente químico e lidam com as diversidades de pensamentos desde que nasceram e convivem diariamente. Lideramos nossos filhos através do exemplo, essa é a melhor forma de ensinarmos a respeito do mundo!
Angelo - As crianças vão aprender de acordo com o que você faz. Se você é uma pessoa que não tem esse tipo de respeito ou é uma pessoa hipócrita que diz que tem e não tem, eles vão perceber. A criança fica te analisando, te "escaneando" o tempo todo. Acho que a melhor forma de ensinar alguma coisa à outra pessoa é você fazendo na frente dela. Ela tem que ver como você faz, até mesmo para entender. E é óbvio: informação, conversa com a criança...
Alessandro - O melhor caminho é o do exemplo. Mostrar que, apesar de eu ser diferente, consigo fazer tudo que os outros conseguem. Que não é preciso ser todo mundo igual para se respeitar. Todos somos diferentes e ninguém é pior do que ninguém.
Cezar - Primeiro é fundamental entender que não existe um padrão de comportamento que rege a todos. Nossa casa não reflete toda a diversidade que há no mundo. A partir disso, devemos expor aos nossos filhos as diferentes maneiras de ser: existem pessoas com diferentes características e isso é enriquecedor enquanto comunidade. Eu tinha um amigo com uma deficiência em uma das mãos, minha filha curiosa ficou olhando sem entender quando tinha uns 3 anos, daí eu disse a ela: “que foi, filha? Quer encostar? Não precisa ter medo de machucá-lo, pode vir!”. É normal que as crianças estranhem algo que nunca viram e é nosso dever orientá-las nessa descoberta. Isso ajudará em seu desenvolvimento, facilitando o entendimento, promovendo a noção sobre respeito e, naturalmente, afetividade ao invés de repulsa.
3. Impedir uma criança de perguntar sobre alguma situação ou algum tipo de perfil físico, transforma o assunto em tabu, algo que é proibido de se falar ou um exemplo feio/estranho. Daí a discriminação é gerada. Existe alguma proibição ou evitação na sua família?
Gabriel - Não, em nenhum nível ou escala. As crianças perguntam, sim, quando veem uma criança diferente delas, pessoas que possuem alguma deformidade ou algo que soe estranho à realidade daquilo que é comum elas verem. Mas fico impressionado com a forma com que perguntam: simples, sem medo, sem ficarem encarando, sem receio... São crianças descobrindo o mundo e perguntam porque querem saber e nós respondemos o porquê e como devem ser tratados.
Angelo - Não tem nenhum assunto que seja tabu, não. Na minha família não. Na verdade, nem morte que é o tabu mais estúpido que existe porque é a única coisa que você tem certeza. E mesmo assim ainda é um tabu. Não pode levar criança em enterro, essas coisas. Na minha casa nunca teve isso, na minha família nunca teve e com minha ex-mulher e meus filhos também não. Nós somos bem abertos, pode falar sobre qualquer assunto mesmo. E as crianças são maravilhosas. Tenho uma filha de 12 anos. Ela já fala de coisas que eu trato como tabu, na verdade, e ela não trata.
Alessandro - Na minha família não há proibição, toda dúvida é bem-vinda. Ninguém sabe tudo, por isso deve ser estimulado o questionamento. Criança não tem filtro, fala o que vem à cabeça, portanto cabe aos adultos entender quando perguntam sobre qualquer coisa. Se for indiscreto, basta explicar. O caminho do diálogo é sempre o melhor.
Cezar - Não existe assunto que nós não possamos conversar em casa. Como responsável pelo desenvolvimento intelectual da minha filha, é meu dever esclarecer qualquer dúvida sem transformar esse descobrimento em algo complicado ou tenso de falar. Claro que para cada idade devemos adaptar uma linguagem que a criança consiga entender, mas não se deve tratar nenhum assunto como se fosse problema, pois tratado dessa maneira provavelmente ele se tornará. Eu digo que minha filha é capaz de entender tudo aquilo que eu for capaz de explicar. Está nas minhas mãos compreender o que ela já sabe sobre o assunto e o que ela conseguirá entender no momento que eu estiver explicando.
4. Você se sente discriminado?
Gabriel - De forma alguma. As pessoas tentam fazer isso diariamente nas redes sociais e é tão comum, mas tão comum, que já deixou de afetar à minha pessoa há muito tempo. Sou uma figura pública, com história conhecida, com a finalidade de prevenção. Aqueles que tentam a discriminação comigo fracassam feio, batem na porta errada. Mas a discriminação só não ocorre porque sou blindado à ela, não porque não falam dela: falam e falam muito, só não me deixo afetar. Mas existe e é real, infelizmente.
Angelo - Claro que me sinto. A gente que é preto sabe como funciona. As pessoas guardam/seguram suas bolsas quando você passa na rua; se olham para trás e te veem, já tem uma reação mais de medo; os seguranças das lojas ficam atrás da gente, de verdade, é uma coisa impressionante. E uma coisa também que é “engraçada”: você nunca é o cliente da loja, sempre está trabalhando. Qualquer pessoa te pergunta as coisas. Ficam te perguntando o tempo todo... Dá um ranço isso! Se todos os funcionários estiverem de verde na loja e o cliente, preto, de amarelo, a pessoa pergunta informações pro preto. Outro dia eu estava na livraria, lendo um livro, a pessoa me cutucou para perguntar "você sabe quanto custa não sei o quê?". Estava todo mundo de preto, uniforme com o nome da livraria, daí eu falei: "olha, eu não trabalho aqui". A pessoa fica sem graça e pede desculpas, mas é sempre assim! Isso é uma discriminação. Eu sou de classe média, então eu tenho alguns privilégios. Os pretos mais pobres sofrem bem mais, com certeza.
Alessandro - Não me sinto discriminado. No bairro onde moro, na minha família, entre meus amigos, todos me tratam com respeito e educação.
Cezar - Nunca me senti discriminado, mas isso não reflete a realidade sobre as pessoas trans no Brasil. Somos o país que mais mata pessoas trans no mundo. Além disso, a morte de uma pessoa trans é sempre acompanhada de muita crueldade e violência. Eu sou muito privilegiado por não ter passado por nenhuma situação de risco. Creio que isso é relacionado à minha cor, aos lugares que frequento, à maneira como lido com a desinformação de quem não entende o que é ser uma pessoa trans e ao bom humor que procuro manter sempre, mesmo em situações inoportunas: procuro tratá-las com naturalidade e didática.
5. De que forma o preconceito é um obstáculo na sua vida?
Gabriel - De nenhuma forma, em nenhum nível, sob nenhuma circunstância... Sempre foi um trampolim! Minha vida é derrubar muros e construir pontes e sempre será assim!
Angelo - Eu não sei responder. Porque é uma coisa tão estrutural que é complicado tudo. Tudo é um obstáculo pra pessoa preta. Desde procurar emprego até pedir um táxi.
Alessandro - O preconceito não é obstáculo na minha vida, raramente o percebo. Nunca fui de me preocupar com o que os outros pensam sobre mim, por isso relevei as poucas vezes em que o sofri.
Cezar - O maior obstáculo relacionado ao preconceito que eu já enfrentei foi quando eu não me sentia emocionalmente seguro para enfrentar qualquer tipo de situação. Me desenvolver sentindo-me totalmente inadequado, desajustado, incompatível foi um dos piores prejuízos que ainda são presentes na minha autoestima. Por muitos anos não permiti o autoconhecimento, conhecer-me de verdade, vivi apenas o roteiro de vidas comuns e tirei todo esse tempo de mim por medo. Ainda carrego resíduos desse prejuízo na autoestima: nem sempre sou seguro nas minhas decisões, raramente me considero bonito e inteligente, me exijo três vezes antes de alguém precisar me cobrar... Isso é muito ruim, pois parece que nunca há paz, mesmo quando estou em mar calmo. A ansiedade, muitas vezes, tira o sono e o pânico tira o ar. Hoje, depois de atingir alguns objetivos necessários para a recuperação da autoestima, já me sinto muito melhor. Minha terapia tem sido cozinhar, cuidar da minha casa, dar o melhor no meu trabalho... Gosto de ver as coisas indo bem, a casa bonita, a mesa cheia e resultados positivos no trabalho.
6. Que mundo você gostaria de deixar para os seus filhos?
Gabriel - Um mundo onde eles possam ser felizes encontrando a si mesmos em tudo o que façam e se dediquem. Um mundo onde as pessoas saibam lidar com a diversidade de pensamentos, sem egoísmo. Um mundo onde eles possam gerenciar as próprias emoções e influenciar pessoas. Na minha concepção, existem dois mundos: o mundo como ele é e o mundo como eu sou. O mundo como ele é leva-se décadas, quiçá, centenas de anos para se transformar. Eu desejo que seja honesto, íntegro, respeitoso, colorido, feliz e alegre o mundo como eles sejam. Esse é o mundo que quero deixar para eles, um mundo onde eles possam gerenciar suas emoções internas e tornar o mundo externo um lugar melhor para as próximas gerações.
Angelo - Queria deixar pros meus filhos um mundo de amigos. Cercados de pessoas que fossem amigas umas das outras, em vez de rivais e competidores. Se não fosse uma competição, se fosse uma união em prol de algo maior, de algo melhor, acho que seria um mundo melhor. Queria viver nesse mundo, inclusive.
Alessandro - Um mundo mais acessível, em que as pessoas se coloquem mais no lugar do outro e percebam que quanto mais iniciativas que melhorem acessibilidade, mais atenderá a todos. E que o tratamento seja igual independente de qualquer distinção.
Cezar - Eu não sei se o mundo que vamos deixar para os nossos filhos será um mundo melhor. Acredito que a atual geração é que vai transformar o mundo em um lugar melhor para se viver. De um lado eu vejo adultos cheios de traumas, ansiedade, agressividade e desprezo... Do outro lado vejo crianças e adolescentes totalmente abertos à aceitação, ao respeito, ao cuidado, sem barreiras para as diferentes maneiras de existir. Eles provavelmente deixarão o mundo melhor para seus filhos, quem sabe meus netos.
7. Como você definiria a palavra RESPEITO?
Gabriel - Nobreza de caráter
Angelo - Não faça aos outros o que você não gostaria que fizessem com você. Alessandro - Respeito para mim é entender o outro, se colocar no lugar dele e não tratar ninguém como não gostaria de ser tratado.
Cezar - Respeito é onde tudo começa. Eu creio que um relacionamento saudável começa pelo respeito, avança para a admiração, aumenta com o gostar até que, de fato, ama-se alguém. Sem respeito, não há nada disso.